Os Pragmáticos

O engenheiro civil é treinado a decidir no meio de incertezas. Quem foi calculista e usou régua de cálculo, adquiriu para a vida um desprezo pelas casas-depois-da-vírgula, e uma habilidade em estar, permanentemente, checando os grandes números.

Quem teve que decidir uma solução de fundação olhando para o terreno, aprendeu a decidir com informações muito precárias.

Por outro lado, quem fez fiação de lógica de comando, sabe que trocar a identificação de um só fio pode dar uma dor de cabeça de muitas horas…

Assim, durante minha carreira, eu por diversas vezes migrei entre estas duas características. Aprender o TQC me fez definitivamente entender o lado do bom senso, e, aos poucos, afastar a necessidade de conhecer os detalhes por dentro. O que, até este momento, ainda não consegui superar inteiramente….

Aprendi que prático é o que é útil, e simples.

Os japoneses são práticos. Na minha vida profissional cruzei com muitas pessoas que tinham este “dom”, aparentemente de berço.
  Meu chefe, na obra da Refinaria, era o Percy Louzada de Abreu. Como  a grande maioria das pessoas de formação técnica, os primeiros orientadores marcam muito. O Percy me marcou demais. Antes, eu trabalhara com ele, como auxiliar-de-engenheiro, estudante que era, na obra de construção da ponte do Rio Guaíba. Minha função era passar a limpo os seus cálculos estruturais. O Percy foi pioneiro no cálculo de protendidos, no Brasil. Passar a limpo, ganhando por hora, era um trabalho tedioso. Eu caprichava na letra de bastão, e anotava os minutos que demandava para terminar uma página. Quando eu lhe entregava um trabalho, ele o revisava todo, e me devolvia, dizendo:

– “Tem dois erros aí!”

Dois números, ou duas letras, as tinha copiado errado. Ter que achá-las, dava um trabalho do cão, irritante, principalmente, por ser retrabalho — não remunerado. Tive que aprender a ser detalhista, no meio da construção civil.
  Um sábado pela manhã, descobri um erro de soma no cálculo dele. Lembro até hoje da conformação da soma, do formato da página… Era um 8+5 que dera 3, em vez de 13. Minha alegria foi enorme, porque o cálculo, dali por diante, tinha que ser todo refeito. Juro que pensei em devolvê-lo dizendo

-“Achei só um erro, mas dos grandes”.

Mas, como estudante e precisando do emprego, vibrei mais corrigindo todas as contas dali para frente. Teve um sabor de néctar de deuses…
  O Percy me convidou para trabalhar com ele, como engenheiro estagiário, na obra de construção da Refinaria Alberto Pasqualini. Ele era o chefe do Setor, e em pouco tempo eu era o seu substituto, embora fosse menos remunerado do que todos os meus colegas que, por terem currículos melhores, tinham sido admitidos como Técnicos A, B, D, ou mesmo como Seniors. O técnico-estagiário quase explodia de orgulho por poder substituir o chefe. Quando me passava um trabalho, o Percy não me dizia o que fazer. Me perguntava como eu faria. Discutíamos, a minha solução sempre prevalecia. Mas eu saía da discussão com a clara impressão de que aquele era o jeito que ele queria que fosse feito, a reunião poderia ser ter sido de apenas 2 minutos. Anos depois, fui aprender a técnica de extensão da Sadia, na qual o extensionista faz o produtor de suínos descobrir o que está certo. Leva só uma pouco mais de tempo. Mas dá muito mais resultado.

O conhecimento está disponível. Gerenciá-lo pode ser passá-lo dum manual para as intenções do operador.

 
  Quando o Percy saía de férias, me mostrava sua mesa, imaculadamente limpa e dizia: Das 6 gavetas, 4 estão vazias. Nesta segunda, estão alguns poucos processos que dependem de solução de outros, podem esperar minha volta. Na terceira, está minha régua de cálculo. Ter a mesa – e as gavetas! – limpa… é, antes de tudo, ser prático!
  Eu já trabalhava no Gerdau, estávamos iniciando o projeto elétrico do laminador. Todas as funções eram discutidas pelos nossos sócios alemães, com os fornecedores do equipamentos. A nós, cabia apenas fazer o projeto da cablagem. Como estava acostumado, comecei a desenhar as bandejas que levariam os cabos, nos túneis abaixo do laminador. Cada cabo tinha que ter eu número de posição na bandeja. Quando se chegava numa sala de bombas subterrânea, se fazia um desenho em três dimensões (isométrico) da sala. Mas nos faltavam as informações para fazer este detalhamento, elas estavam com os alemães. O nosso cronograma pedia que eles as mandassem, e elas não vinham. Um dia, chegou o engenheiro eletricista alemão, no canteiro de obras. Até então, ele só havia pedido que fossem embutidos perfis de ferro a cada tantos metros, em todos os túneis. Pedi-lhe os detalhes que me faltavam. Ele perguntou:

– “Mas para que servem estes desenhos de cablagem que queres fazer?”

Ante minha cara de espanto, prosseguiu.

– “Eu já encomendei as bandejas e os cabos. Marco, depois, com giz, onde as bandejas devem ir. Se faltar espaço, ponho mais uma, é rápido”.

– “E como fazes nas salas de bombas, por exemplo?”

– “Também não vou fazer desenho. Chego na sala, com o eletricista, e explico para ele como deve fazer as ligações. Meu projeto é em escala 1:1, em 3 dimensões….”


  Em fins dos anos 80, eu estava na Suíça, como chefe de delegação da equipe de punhobol da Sogipa, que disputava, em Iona, o maior torneio que então existia, nesta modalidade esportiva. Em dois dias as 200 equipes eram agrupadas em categorias, e seguiam uma planilha que só tinha números – os horários de jogo eram do tipo 8:31 às 8:51, no minuto. Nós tínhamos sido convidados para participar do Grupo Elite – onde estavam as 20 melhores equipes da Europa. Nossa equipe era jovem, pela segunda vez comparecia ao torneio, e, depois de inúmeras peripécias – jogos empatados, classificação na repescagem, vitórias de virada no último minuto – chegamos ao título de campeões, pela primeira vez! Logo após terminada a premiação, pedi ao Charlie, organizador do evento, que me cedesse as súmulas dos nossos jogos. Como não tínhamos filmado, era uma forma de mostrar, aos que ficaram no Brasil, quão dramática tinha sido nossa conquista.

– “Impossível” –  me respondeu o dirigente, suiçamente.

– “Mas por que?” – insisti. “Podes me emprestar , eu dou um jeito de tirar xerox, ou ponho a gurizada a copiar, se for preciso…”

– “Não dá!”

– “Mas por que não? Onde estão as súmulas?” insisti, já me irritando com o suíço.

– “Queimei. Depois de proclamado o campeão, entregue o troféu e o envelope com o prêmio em dinheiro, eu queimo as súmulas, sempre”.

Eu tinha, em casa, caixotes e caixotes de súmulas, desde 1953… Talvez fosse pela emoção do momento, talvez pelo contraste de atitudes. Aprendi muito, no episódio, o que é ser prático
  O Boretzky era um velhinho miúdo, chato com sabem ser os velhinhos miúdos alemães. Encarregado do projeto civil da obra da Cosigua, no pique da remessa dos desenhos de fundações, enquanto nós, muitos, corríamos feito loucos do lado de cá – do lado de lá do Atlântico ele, que era só um, tirou 30 dias corridos de férias, pois tinha programado todo um roteiro de visitas a velhas igrejas… O Boretzky era organizado. Fui entender como ele funcionava, alguns anos depois, no projeto da Fase II da Usina. Eu estava na Alemanha e, entre outras coisas, precisava arrancar dele as coordenadas de 4 estacas. O bate-estacas da Franki tinha um deslocamento moroso e caro, e estava passando pelo local em que elas deveriam ser cravadas. Voltar lá, depois, era um contra-senso. O Boretzky se recusou a me dar as coordenadas. Objetei que ele já tinha detalhado toda a correia transportadora, faltava apenas um detalhe de ligação com uma correia auxiliar, nada tinha a ver com as estacas, ele bem que poderia….

– “Os meus desenhos só vão para a prancheta duas vezes” – me explicou ele.

 “A primeira, quando tenho todas as informações.

  A segunda, para fazer o as-built(*)”.

  Os nossos desenhos subiam na prancheta inúmeras vezes. As revisões recebiam letras sucessivas, quando passava do z se usava aa, bb, etc…. E não fazíamos as-built. Terminada a obra, a revisão final, a mais importante para a vida da instalação – esta, não era feita… Quando ele reteve o conhecimento que tinha sobre a posição das estacas, nos estava dando uma aula de gestão do conhecimento….
  O seu Germano foi, dos quatro irmão Johannpeter, o que menos conheci. Era o único sem curso superior, começara como guri-de-recados na firma do pai. Fora de reuniões de Conselho, eu talvez tenha conversado com ele, particularmente, umas 3 ou 4 vezes. Mas ele era, para mim, a síntese do pragmatismo. Qualquer dica que desse, a gente ia atrás. Sempre era quente!
  Um dia, ele se virou para mim e para o Klaus, Vice Presidente técnico, dizendo

– “Vocês precisam ir dar uma olhada no Forno Panela que o Korff tem na Inglaterra”.

Diabos, ele não era técnico, como poderia estar mais atualizado do que nós? Fomos lá. Acho que era fevereiro. Em agosto-setembro do mesmo ano o Sommer tinha instalado o primeiro forno-panela do Grupo, na Riograndense. E nossas Aciarias nunca mais foram as mesmas…
  Em outro episódio, o seu Germano pediu ao Pedó para olhar uma máquina de amassar ferro que tinha visto em São Paulo. Fomos os dois lá. Dois anos depois, nossas principais Usinas já tinham os LPPs – Laminadores de Pequenos Perfis…
  Há muitos, muitos outros casos. Um laminador comprado e não utilizado, no Paraguai. O desmanche de navios. O problema dos pregos enferrujados na Aço Norte. O seu Germano sempre falava muito pouco, rigorosamente o necessário. No caso da fábrica de pregos do Nordeste, o conhecimento não estava com ele. O problema de ferrugem era crônico. Ele fez o conhecimento aparecer: um dia, mandou parar a fábrica.

– “E só volta a operar quando vocês tiverem descoberto de onde vem esta ferrugem”.

Em menos de uma semana, grupos de trabalho levantaram algumas dezenas de causas. Consultores e especialistas voaram para Recife. O problema apareceu. Decidimos trocar o ácido da decapagem no prédio contíguo. Desde então, prego na Aço Norte não tem ferrugem. Gestão do conhecimento dá resultado!
  Ele falava muito pouco, mas era decisivo. Na Cosigua, o Comitê discutia, semanas a fio, se a área de Vendas deveria sair do Centro da Cidade e ir para a Usina, em Santa Cruz. Ele só ouvia. Um dia, simplesmente disse:

– “Já ouvi o bastante. A área de Vendas vem!”

Veio. E ele estava certo.
  No nordeste, discutíamos possibilidades de desmanches de navios. Tínhamos várias instalações no Brasil, contratáramos desengenheiros navais, monitorávamos o movimento de navios em todo o mundo. A grande questão era saber se valia a pena investir, se haveria navios a longo prazo, em preço e quantidade suficiente. Os economistas e engenheiros se esforçavam, e não concluíam nada. Numa das reuniões, no calor de uma discussão que aparentemente nem estava ouvindo, o seu Germano levantou a cabeça e disse, simplesmente,

– “Navio, tem.”

Para mim, como técnico, envolvido nos estudos de viabilidade de inúmeras alternativas, era tudo o que eu precisava.
  O gringo Pedó foi a pessoa mais focada em objetivos com quem convivi. No futebol ele entrava de sapatos, e se formava um círculo de respeito em torno ele. Era ruim, mas tinha garra, e era sempre o primeiro ou segundo a ser escolhido nas peladas. Inventou que tinha que jogar volei. Frequentou uma rede, na Barra, por anos, aceito entre cobrões do volei carioca e nacional. Quando assumiu a operação da Cosigua, como primeiro brasileiro a exercer a função de fato, ele instilou pragmatismo em todos os detentores de conhecimento que o rodeavam. Percorria a área, e perguntava, ao engenheiro:

– “Para que serve este reloginho?”

– “Indica a pressão na linha, para….”

– “ É importante, precisa?”

– “Claro, porque sem ele…”

– “Então, amanhã de manhã estou aqui de novo, e ou o ponteiro do relógio está no lugar, ou o relógio não está mais ai.”

Anotava na sua agenda. O homem do conhecimento tinha uma certeza: no dia seguinte, o ponteiro do manômetro tinha que estar no lugar.

Pedó semeava valores.

 
  Todos os dias, parava ao lado da tesoura de desponte da Laminação 1. Ali se cortava um pedaço da peça de 1400 kg que entrava no laminador. Se cortasse demais, lá se iam 1 ou 2% do rendimento, o lucro da operação. Ele foi lá todos os dias, durante muito tempo. Repetiu Nenê Prancha: “penalti é tão importante, que o presidente do clube é quem tinha que bater”. O resultado da operação mudou.
  O mais importante no conhecimento é sua disponibilidade, na hora certa e no lugar certo. Daí a admiração que tenho por estas e outras pessoas que, como gestores, ajudaram os técnicos a serem úteis. Gerenciar o conhecimento é tão delicado como dar um saque, no volei, contra o vento. Qualquer pequeno desvio na saída, a bola vai fora. A distância entre o gasto inútil e a aplicação de alta rentabilidade está neste direcionamento. Sem firulas, pode-se chamar de pragmatismo.   banner_instrutor3]]>

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